Estoura um pneu do ônibus em que você
está justamente no trecho mais perigoso da estrada, lugar onde até quem nunca
esteve conta que já foi assaltado. Não tem estepe para substituir o velho
careca nem cobertura para ligar pedindo ajuda, e ficam parados você e toda
aquela gente enjoada com cara de enterro às nove da noite no meio do nada,
esperando que saia um capeta ou um messias do meio do mato para prestar socorro
ou sacanear vocês.
O motorista que parece o Nelson Ned — só
que mais alto. — some a procurar ajuda. Enquanto isso as crianças brincam do
que cansativamente chamam de pega-congelou americano.
— Não saia do ônibus, Luís Gustavo! Aqui é
perigoso! — grita uma voz feminina.
Luís
Gustavo é pego na brincadeira e fica congelado fora do ônibus, impossibilitado de
atender ao pedido da mãe que faz uma cara medonha e desce para busca-lo. Dá-lhe
duas bofetadas e bota de castigo. Uma semana sem videogame, coitado.
Lá fora faz um frio infeliz. Os homens
discutem o erro; as mulheres a culpa. Pacientes esperam; ansiosos reclamam,
cantadores cantam, pregadores pregam e acreditadores acreditam. O que você faz?
Escreve? Claro que não. Veja o desespero das senhoras. Não é nada engraçado.
Não pode escrever sobre isso, mas nessas
horas percebe o quanto a literatura lhe tornou excêntrico. Quando o ônibus
não vira, ninguém morre, ou é ferido, ou assaltado, e você pensa: Clichê
maldito! Não dá nem uma crônica!
Você é doente. Espera que aconteça qualquer
coisa e para seu espanto nada sucede. Nada além de insetos em volta da lâmpada.
Insetos, muitos insetos. Você nunca viu tantos.
— Isso aqui tá parecendo um filme que assisti
semana passada; só falta subir um leopardo e jantar todo mundo. — comenta um senhor
simpático tão careca quanto o pneu que estourou faz duas horas.
Mais tarde lhe ocorre que era justamente aquele
senhor o mais velho e mais maduro de todos os passageiros, e que provavelmente os
seus medos se foram junto com os cabelos, que ele aprendeu com o passar do
tempo a gracejar perante as mais diversas situações; virtude que certamente requereu
muita prática. E lhe ocorre que apesar de se sentir como um velho rabugento
desde os dezoito, você é mais feliz que a maioria. A vida, às vezes, pode ser um
ônibus quebrado na beira da estrada; uma verdadeira negação, mas por dentro
você ri. Ninguém acha graça, mas você ri porque você é estúpido. A estupidez é
uma benção.
A verdadeira história acaba quando Nelson finalmente chega com três rapazes e um pneu, mas essa não é suficientemente boa. A sua é estória
mais interessante. Você inventa um leopardo assombroso que faz o motorista capotar
o ônibus e todos ficarem sem videogame para sempre.
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