segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Pequeno

          Eu, que sempre acabo nessas furadas, Marcos, e a noiva de Marcos, fomos à cidade comprar trecos para o bebê, discutindo pelo caminho que nome se daria ao pequeno.
     — Bem que podia se chamar “Pequeno”. — Pensei alto o bastante pra que Luci refutasse.
     — Pequeno?! Mas o menino vai crescer logo!
     — Quando ficar grande, mudamos o nome — intercedeu Marcos.
     — O nome dele é Felipe. — decretou a dona do Marcos e do bebê, mas eu não desisti:
     — Mesmo assim vou chamar de pequeno.
     Marcos estava comigo, e apesar de bem decidida, Luci não pôde ganhar a discussão; éramos maioria.
     — Vocês se merecem. — completou a magra com um riso tranquilo.
     Comemoramos a vitória com um aperto de mão secreto, tão secreto que nem sabíamos, inventamos tudo na hora. Uma coisa era certa: “O nome dele é Felipe”.
     Achei que fosse o momento ideal para felicitar meu amigo por tudo quanto lhe sucedera, e pedi que contasse comigo nas horas felizes e nos dias de cão. Assim me despedi do meu casal predileto.
     — Por que não vem com a gente? Nós vamos...
     — Não. Obrigado! Preciso terminar um capítulo.

     Em vinte minutos eu estava em casa. Um dia quero ser a família de alguém, mas por enquanto eu como pipoca e seguro vela para o mundo inteiro. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Parquinho

          Frequentávamos o Parque da Jaqueira, lá eu aprendi a andar de bicicleta. Ainda me lembro do primeiro tombo. Foi tentando dar a volta que me estatelei no chão. Eu tinha sete anos de idade e retroceder já era bem arriscado.
     Gostava daquele lugar. Especialmente se me deixavam ficar no parquinho. Minha mãe conversando com as outras mães sobre assuntos de mãe, e eu no parquinho. Também gostava das outras mães; elas impediam que nós voltássemos para casa cedo. Dava tempo de andar de bicicleta e brincar no parquinho.
     Eu amava minha bicicleta; mas não sabia fazer a volta. Pedalei tão rápido, certa vez, que devo ter corrido o parque inteiro sem minha mãe perceber. Descobri naquele dia que o meu parquinho não era único. Havia tantos outros ali perto: O dos nanicos, onde balanço era baixo e o escorrego não tinha graça; o dos grandes que eram pouco maiores do que eu; o dos grandes de verdade; o dos maiores, nesse eu só poderia brincar quando crescesse.
     Desde então, eu esperava ficar grande para brincar com os grandes no parquinho maior. Aqueles sim eram brinquedos de verdade. Mas o meu interesse por gangorras, escorregos e balanços, não durou tanto tempo assim.
     Estou crescendo. Ainda cortamos caminho pelo Parque da Jaqueira. Eu tenho uma nova bicicleta que se parece muito com a antiga e, é como se a bicicleta tivesse crescido também.
     Gosto de sair com a minha mãe. Não tenho absolutamente nada contra parquinhos ou coisas do gênero; ela também não.
     — Bhrbrhl! Cadê o cavalinho?
     — Mãe, ele não vai te responder.
     Às vezes parece que nós dois trocamos de lugar. Eu até emprestaria a bicicleta para ela descobrir o Parque, mas tenho ciúme. Logo agora que aprendi a dar a volta?!

Dedicado a Bruna Carneiro.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Otávio

          Era o Otávio a quem chamavam de otário, me pedia emprestado o Morte e Vida Severina que eu ganhei no aniversário do meu primo Santiago — que tocava contrabaixo e arranhava violão.
     Emprestei o livro a ele tantas vezes que fizemos amizade.
     — Grande Otávio...
     — Pode me chamar de otário.
     — Mas não é pejorativo?
     — Não se você disser abertamente.
     Estranho. Mas convenci-me com o passar do tempo de que Otávio não era otário coisa nenhuma; só era pobre de autoestima.
     — É para o meu filho. — surpreendeu-me certa vez.
     — Do que está falando?
     — O livro, é para o meu filho; ele adora quando leio.
     Admirei aquele sujeito como poucas vezes admirei alguém na vida.
     — Você lê para o seu filho?
     — Queria que meu pai tivesse lido pra mim quando criança; mas ele foi um cara bem difícil. — disse com certa melancolia na voz.
     — Qual a idade?
     — Do meu pai?
     — Do seu filho.
     — Oito anos.
     Não se passava uma semana sem que Otávio aparecesse do meu lado.
     — Me empresta aquele do Cabral. — ele dizia.
     E quando ficou dois meses sem dar as caras, eu fui procura-lo.
     — Não vai querer o livro? — perguntei.
     — Não, obrigado! Aquele menino tem que aprender a ser homem, ou vai ficar a vida toda grudado na barra da saia da mãe.
     — Ah é? — questionei sem disfarçar o desdém.
     — Foi assim que meu pai me ensinou. — concluiu chateado.
     Foi quando me dei conta. Seu pai era um idiota, Otávio não tinha culpa, ele era só um reflexo. Se tinha culpa, não tinha culpa de ter culpa.
     Meu pai também era difícil, porquanto o pai dele era, e o pai de seu pai mais ainda. Tratei de devolver o livro à estante, onde ficará por algum tempo, pensando: qual o problema com os pais? Alguém precisa ensina-los que crianças não são telas destinadas à pintura de autorretratos.
     Leio para não perder o juízo. Desdenho meus limites e os dos outros, mas no fundo, entendo o otário.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Filhote

          Eu costumava ter medo de altura. Certo dia escorreguei no chão molhado pela urina do filhote e despenquei do terraço. Assim, perdi o medo, quebrei a perna esquerda e fraturei a clavícula — que só então eu soube onde fica.
     Quando deixei a bengala, o filhote já nem era mais filhote. Ocupava sozinho todo o assento da poltrona. Tinha um latido grosso parecido com resmungo de velho ranzinza e o péssimo hábito de montar nas visitas.
     Já faz um tempo que o velho filhote se foi. Os meninos, ao redor da poltrona, não queriam saber de consolo. Adotamos um gato a que chamamos de Chico por causa do Cezar da música triste que Rosa cantava pra eles dormirem. Não deu muito certo.
     É verdade que Chico sabia descer do terraço melhor do que eu, mas nunca aprendeu a diferença entre o sofá da sala e a caixa de areia. Dormia na caixa e fazia cocô no sofá.
     Dei-o de presente de natal ao vizinho da direita, com quem antipatizo graças a seu péssimo gosto musical. Foi quando assumi a poltrona e, consequentemente, as responsabilidades do filhote.
     Agora sou eu quem brinca com as crianças e resmunga como um velho ranzinza. Só não faço xixi no terraço — não quero que ninguém frature a clavícula — nem monto nas visitas, porque isso não se faz.

sábado, 1 de novembro de 2014

Separação

          Um pouco mais de uísque, quem sabe, um pouco mais de tempo, e ficaríamos bem. Sempre nos precipitamos.
     — Adeus. — disse ela, me entregando as chaves.
     Estendi-lhe os braços.
     — Mas, querida...
     — Acabou! — reclamou histérica.
     Dei de ombros me sentindo um grandessíssimo idiota e chorei de rir perante tamanha desgraça que me pareceu, naquela hora, inconcebível.
     — Você que sabe. — resmunguei com pouca entonação.
     Virou as costas, baixei a vista; mas eu ainda pude ouvi-la chorar, prender o choro, bater a porta, descer a escada... Estou acabado, pensei. Agora sim estou acabado.
     Peguei meu copo, ainda quase cheio, e encostei-me à janela a tempo de vê-la dobrar a esquina. Pensei em gritar seu nome, só pensei, em ir atrás dela, mas não o fiz. Fiquei parado como um débil. Foi quando me tornei infeliz.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Vinte

          Sexta-feira. Peguei o violão e uma garrafa de vinho, fui à praia e me sentei à sombra de um coqueiro para esperar o pôr-do-sol. Fazia um tempo esquisito; a lua mais parecia um pedaço de unha grudado num tapete cinza.
     Cantarolando, toquei umas de Chico, mas a nostalgia me pegou. Eram antigas no meu tempo de menino. E, puta merda. Já tenho vinte anos! Almejo viver trinta, portanto, restam dez para publicar pelo menos um romance e lançar dois ou três álbuns com todas essas que fiz para a mesma mulher.
     Os companheiros de escola sumiram como fumaça quando se apaga o fogo; poucos ainda me restam. Parecem satisfeitos com a vida que levam. Cada um fará seu próprio pé-de-meia conforme a vocação. Tudo certo.
     Algo me diz que logo chegará meu tempo, e passará como um ladrão levando toda a minha capacidade de desprovimento. Precisarei de mais trabalho, mais dinheiro, e de limites. Por enquanto me contento com o pôr-do-sol e uma garrafa de vinho. Ouço as ondas quebrando lá embaixo. O tempo passa tão depressa, penso.
     Essa vida, de tão breve, muitas vezes me parece fútil. Talvez seja mesmo fútil, tão fútil quanto esta garrafa que tenho na mão. O que farei quando acabar o vinho?
     Sei lá. Eu acho que vou querer viver cinquenta.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Musa

          Eu adorava vê-la; gostava de ouvi-la. Admirava o seu jeito de contar histórias e ficava escutando a tarde toda. À noite escrevia. E podia encontra-la sempre que quisesse através da minha escrita. Era a minha musa inspiradora.
      Adoro seus poemas  ela dizia.
     Passei a me sentir o máximo, mas com o passar do tempo, tudo se esclareceu. Ela não gostava de mim. Gostava dos meus poemas. Ironia dos diabos.
     Cada poema era como se fosse um menino de recado; especialmente aquele pequeno ­- que eu agora chamarei de Atílio, porque acordei com esse nome na cabeça. E afinal de contas, eu sou o escritor aqui.
     Tive de confessar quanto a amava, mas me faltou coragem. Então mandei recado. Mandei por Atílio. E ela apaixonou-se por ele, ignorando que era eu disfarçado. Porcaria de disfarce!
     Fui eu que escrevi o poema e posso muito bem desecrevê-lo se quiser. Não posso? Bobagem. Melhor seria torna-lo uma música. Mas quem cantaria essa droga? Começo a achar que nada disso faz sentido: musas e poemas e meninos de recado. Excentricidade minha.
     Ora bolas, todo mundo é excêntrico. Se não é o tempo todo, é de vez em quando, e dá no mesmo. Uns fazem tudo o que podem, outros planejam e morrem. Eu escrevo poemas, como um viciado.
     Em todo caso, melhor fazer as pazes com Atílio.